domingo, 7 de março de 2010

O casamento da cabra

No Correio da Manhã de 2 de Março, li a seguinte notícia:

“O Tribunal Judicial de Gondola, centro de Moçambique, condenou a seis meses de cadeia, por “furto qualificado”, os dois jovens apanhados pela polícia a manter relações sexuais com uma cabra. Os donos do animal continuam a exigir o casamento.

Embora segundo as instâncias judiciais o caso esteja encerrado, os donos da cabra não se conformam e vão, segundo a agência Lusa, recorrer ao poder tradicional para exigir uma indemnização e o casamento dos jovens com a cabra.

“O Tribunal concluiu que os dois jovens praticaram furto da cabra, que é tipificado como crime no Código Penal (moçambicano)”, disse esta terça-feira Lino Guido, o juiz responsável pelo caso.

Lino Guido acrescentou também que, embora o acto sexual com a cabra em que os jovens se envolveram fira “a moral e os costumes tradicionais da população local”, o mesmo “não se ajusta” à legislação moçambicana.

Os dois jovens, cuja idade não foi revelada, foram apanhados na semana passada pela polícia em Matsinho, distrito de Gondola, província de Manica, a manter relações sexuais com a referida cabra, no âmbito de uma espécie de ritual satânico.

O animal abusado foi devolvido, por decisão do tribunal, ao proprietário do animal. Os dois jovens cumprem a pena na cadeia distrital de Gondola.”


O que salta à vista nesta notícia não é o facto dos dois jovens terem feito o que fizeram (incompreensível e condenável a todos os títulos, mas por certo transversal a muitas culturas e a muitos povos), mas a exigência feita pelos donos da cabra para que haja casamento. E se existe fundamento na exigência feita para que o casamento se faça?

Vejamos então…

De acordo com os costumes tradicionais de algumas tribos Moçambicanas sempre que um homem estivesse interessado numa mulher bastaria pagar aos seus pais o tributo por eles exigido e havia “casamento”. A selagem do “acordo” era pública e em sua honra era feita uma festa que durava algum tempo (por vezes, dias), onde não faltava comida, bebida e batuque. A poligamia não era recriminada e o poder dos homens media-se muitas vezes pelo número de mulheres que tinham. Não era por acaso que no topo dessa cadeia do poder os régulos eram aqueles que mais mulheres tinham. O papel da mulher na sociedade era muito importante dado que dependia muito dela a alimentação da família.

O tributo que alguns poderão associar ao acto de uma venda, não era mais que a compensação que os pais exigiam pela “perda” de dois braços na busca de alimento para a família. Se não era o amor que tirava uma mulher de casa dos pais para casar com um homem, mas o poder financeiro desse homem em pagar o tributo exigido pelos pais, independentemente do “comprador” ser novo ou velho, será que este acto não configurava um acto de escravidão? Não.
Caso o homem usasse de violência sobre a mulher e não cumprisse com os deveres instituídos pela comunidade, a mulher tinha o direito de recolher a casa dos pais, só de lá saindo depois do homem mostrar arrependimento e pagar outro tributo.

O que tem tudo isto a ver com o casamento da cabra?

Imaginem que aquela cabra "só" existia para dar leite e que o acto praticado pelos jovens “conspurcou” aquele leite. Já ninguém o bebe e ninguém está disposto a matar quem, pelo facto de durante muito tempo ter alimentado aquela família, fazia parte integrante dela. Só existe uma saída: pagamento do tributo, saída da cabra do seio da família e tratamento digno da cabra por parte dos seus tomadores. Se a isto alguém chama casamento, então, que seja casamento.

Será que esta exigência por parte dos donos da cabra não revela um enorme respeito pelos direitos dos animais que permanentemente ignoramos?

E dizemo-nos nós evoluídos e pertencentes a uma cultura superior…

Post Scriptum

Amanhã (8 de Março) comemora-se o dia internacional da Mulher. Para todas as Mulheres do Mundo aqui expresso o meu respeito e admiração, em particular para a Neuza, Gina e Lucília a quem envio um beijo muito especial enquanto pai, marido e filho.

Sem comentários: