sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Álbum de Recordações

Concluo hoje, e por ora, um conjunto de textos sobre uma terra muito especial que educou a criança que fui, moldou fortemente o homem que sou e que Mia Couto tão bem sabe cantar: Moçambique.

Recordo…
As viagens entre Marromeu e Luabo ao longo do Zambeze no 1º andar do Mezingo ou do Marruma. O Mezingo e o Marruma pareciam irmãos gémeos dos barcos que sulcavam as águas do Mississipi nos finais do século XIX e primeira metade do século XX. As suas grandes rodas à popa faziam um barulho muito peculiar ao girarem e mergulharem as suas pás nas águas escuras do rio, movendo o barco e os batelões a si atrelados quer a bordo, quer a estibordo. Quando os barcos desciam o Zambeze, os batelões carregados de açúcar das fábricas da Sena Sugar Estates, quase que mergulhavam integralmente no rio (o seu destino era o porto de Chinde localizado na foz do Zambeze). Como me entusiasmava vendo os crocodilos nas margens do rio mergulharem nas águas à passagem dos barcos e buscando nas ilhas de plantas marinhas a cabeça de um hipopótamo!

Recordo…
A magia da noite no interior da floresta do bairro da Lusalite, no Dondo e como não tinha medo de me aventurar no seu interior guiando-me apenas através das “luzes” dos pirilampos, que inundavam as suas clareiras. Hoje arrepio-me só de pensar quão loucos éramos ao aventurarmo-nos num espaço minado de cobras, macacos e outros animais selvagens, sem levarmos connosco uma lanterna e muito menos um canivete. Os sons que a floresta produzia eram um bálsamo para os nossos medos!

Recordo…
A jibóia que matei com uma pressão de ar depois desta ter invadido a capoeira das galinhas da minha mãe, ter engolido dois frangos e um peru e ter ficado encurralada na casota onde aqueles animais eram guardados durante a noite. As mãos e os pés tremiam-me tanto que só encostando a pressão de ar na ombreira da porta é que conseguia apontar e disparar com algum rigor para aquele enorme corpo que se localizava a dois metros de mim. O coração não parava de bater, à medida que ia disparando para aquela enorme massa enrolada numa viga de madeira da cobertura. O pior foi no final, quando ela caiu no chão e levantou a cabeça para mim. O coração quase que me saltou da boca e dei por ventura o maior salto da minha vida. No fim, ganhou o mais forte e o resultado saldou-se por uma linda pele de uma jibóia com cerca de três metros e meio.

Recordo…
As águas quentes, límpidas e transparentes de algumas praias Moçambicanas, especialmente a Praia de Fernão Veloso e das Chocas. Os mergulhos nas águas da piscina na ilha de Moçambique que as marés-cheias se incumbiam de substituir. A profusão de peixes na linha de água junto à areia das praias.

Recordo…
A amizade entre as gentes que habitavam tais terras. Fossem brancos ou pretos, as amizades estabelecidas eram perenes. A terra parecia que produzia uma “cola especial”. Uma vez amigo, amigo para sempre. Os erros eram facilmente desculpados e era dispensada a busca da razão que sustentava as amizades. Era-se amigo e pronto.

Recordo…
Como aprendi a contar até 10 em “Chissena”, muito antes de aprender outras coisas mais julgadas, por ventura, mais elementares: “posse”; “pir”; “tato”; “manai”; “chano”; “tantato”; “pnome”; “ser”; “femba”; “cume”.

Record…
Tanto que recordo!...

Post-scriptum: Os tempos que aí vêm fazem com que eu suspenda as minhas recordações Moçambicanas do meu passado e derive a minha atenção e os meus pensamentos para o meu presente. Já se agitam as águas da política nacional e local. Pese o facto de não fazer parte da tripulação de qualquer dos barcos que irão sulcar tais águas, a Constituição da Republica Portuguesa consagra-me direitos que entendo utilizar. E assim, nos próximos tempos irei aqui expressar os meus pensamentos sobre as eleições legislativas do meu País e autárquicas do meu Concelho.

sábado, 22 de agosto de 2009

A Festa da Morte

Se há coisas que me surpreendem é o facto de, depois de termos vivido já alguns “anitos” sermos capazes de recordar episódios da nossa vida que aconteceram há algumas dezenas de anos, com uma nitidez que chega a ser surpreendente.

E o surpreendente é que esses episódios são guardados na nossa memória sem a “nossa autorização”. É como se dentro do nosso cérebro habitasse um bibliotecário com poder discricionário para poder guardar ou eliminar a informação que os nossos sentidos vão captando ao longo do caminho da vida, sem que para tal pudessemos intervir.

Na biblioteca da minha memória são muitos os episódios da minha vida que tenho guardado. Se existem muitos que o tempo já se encarregou de “eliminar”, outros há que se tornaram “imunes” à acção do tempo. E essa “imunidade” é de tal modo activa que mesmo passados muitos anos após terem acontecido, quando “olho” para o “álbum da minha memória”, a sua intemporalidade faz como se tal vivência tivesse sido “guardada” no dia de ontem.

É assim que no meio de “tamanha desarrumação” consigo retirar alguns episódios que vivi durante as minhas férias escolares do ano lectivo de 1963/64.

O meu pai era responsável por uma “cantina” localizada no mato, a cerca de 10 quilómetros de Marromeu, uma Vila localizada na margem esquerda do Rio Zambeze e a Norte do Distrito de Manica e Sofala. A família decidiu que seria ali que seriam passadas as férias grandes escolares.

Recordo muito bem a viagem entre Marromeu e a “cantina”: como para a carrinha Bedford (de cor verde-escuro e de caixa aberta) trabalhar foi preciso “enfiar-se” uma longa manivela na frente do motor e rodar-se com alguma energia; como era sinuoso, estreito e esburacado o caminho de terra batida; como eu e os meus irmãos, atrás e de pé na caixa aberta, nos agarrávamos ao topo da cabine da carrinha e baixávamos as cabeças para nos furtarmos às investidas das canas que existiam ao longo da berma e pendiam para o caminho; como jubilávamos quando o caminho era melhor e permitia ao meu pai atingir o limite máximo de velocidade que a carrinha dava que era os 45 quilómetros por hora; como perscrutávamos no horizonte a existência de cobras e outros animais selvagens.

Recordo muito bem a cantina onde o meu pai vendia à população negra da área (não havia qualquer população branca num raio de 10 quilómetros) todo o tipo de produtos desde vinho a farinha. A cantina pertencia a um tio do meu pai e este era um simples empregado daquele.

Recordo como o meu pai se indignava, resmungando entre dentes, sempre que tinha de adicionar água ao vinho para que a receita fosse maior cumprindo ordens do seu tio e patrão. Homem de carácter forte e profundo respeitador do espaço dos outros, independentemente da sua raça ou credo, foi com alguma naturalidade que o meu pai começou a fazer alguns amigos entre os seus fregueses de raça negra. De entre eles destacava-se o régulo da tribo localizada na área.

E quando os pais são amigos existe toda a probabilidade dos filhos também o serem.

Entre nós e os filhos do régulo (de quem já não lembro os seus nomes) cresceu uma cumplicidade de tal ordem que onde estavam eles, estávamos nós e vice-versa. Os seus “carrinhos” feitos de colmos de canas eram claramente superiores aos nossos de lata. Eles brincavam com os nossos e nós com os deles. Como gostava de “conduzir” os seus carrinhos! Eram autênticas obras-primas. Retirada a casca da cana, com o colmo fazia-se as carroçarias dos camiões, jeeps, carros, etc. A ligação entre os pedaços de colmo era feita à custa de pequenos palitos de cana. As caricas das garrafas dos refrigerantes eram os faróis. As rodas eram feitas com arames e tinham um “sistema de molas” que me deliciava sempre que o carrinho circulava num carreiro com depressões. O melhor de tudo era o facto de, para brincarmos, não termos de nos sentar ou ajoelhar no chão. Fazíamo-lo de pé. Uma longa cana que ligava o volante (em arame) ao carrinho permitia-nos “conduzi-lo” sempre em pé.

Um dia recebemos um convite muito especial. O régulo convidou-nos para uma festa que iria ter lugar à noite.

Através de estreitos caminhos, e com o recurso a lanternas, chegámos ao interior do agrupamento de palhotas onde o régulo, família e demais elementos da tribo viviam. Encaminhados para uma clareira iluminada por grandes fogueiras tive a oportunidade de assistir a um evento que nunca mais esqueci: Uma festa em memória de alguém que acabara de falecer.

Recordo como alguns homens envergando peles de macaco e imitando o andar, gestos e urros dos símios provocavam um corpo que jazia no centro da clareira (seria o morto ou seria alguém no seu lugar?), tudo isto acompanhado ao som dos batuques e sons guturais de homens e mulheres que se espalhavam em torno da clareira.

Na minha inocência aquilo nada me dizia, embora infundisse um enorme respeito acompanhado por um tremor que nos percorria o corpo. Durante algum tempo duraram as "macacadas" até que deu entrada, no recinto, alguém com uma grande pele de leão que o cobria totalmente. Os homens-macaco com urros muito fortes, quais gritos de desespero, de imediato deixaram de provocar o corpo que jazia imóvel no chão, para abandonarem a clareira de uma forma desordenada. O homem-leão chegou junto do corpo, cobriu-o com a sua enorme pele e um enorme silêncio se fez. Alguns minutos depois, o homem-leão começou a deslocar-se para fora da clareira. À medida que se deslocava, o corpo oculto debaixo da sua enorme pele acompanhava o seu movimento. O morto seria um figurante ou debaixo da capa estava alguém que ia arrastando o morto para fora da clareira? Nunca soube.

Quando o homem-leão saiu da clareira “levando” consigo o “morto”, deu-se início a uma enorme festa, onde não faltavam os batuques, a dança e a “nipa” (aguardente de cana sacarina).

Noite dentro, regressámos a casa. Na minha cama e durante o resto daquela noite e na noite seguinte os ecos dos batuques que a selva africana distribuiu não permitiram que eu fechasse os olhos. Como é que alguém era capaz de festejar perante a morte? O que significavam a presença dos macacos e do leão?

Hoje passados que são 45 anos ainda não consegui encontrar as respostas àquelas perguntas. Todavia não deixa de ser curioso o facto de alguém ser capaz de não festejar um nascimento e de festejar uma morte, contrariamente ao que estamos habituados.


Pensando bem:
- Será que o nascimento não é o princípio da dor e a morte o seu fim?
- Será que não é a intensidade da dor, física ou mental, que determina o grau de felicidade do ser humano?
- Será que os macacos significavam as tentações da vida que todos nós permanentemente estamos sujeitos e o leão a impossibilidade de podermos escapar à força de um elemento superior, muitas vezes identificado como destino?
- Será que…?


Tantas são as perguntas que podem ser formuladas sobre a vida e a morte, para as quais não existem respostas matemáticas!

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Uma Pausa Necessária

Se uma imagem vale mais do que mil palavras, penso que o meu tema de hoje é o mais longo que aqui já escrevi.






sábado, 8 de agosto de 2009

Uma pescaria em África (2)

A época das chuvas do ano de 1969 já decorria havia algumas semanas.

A minha casa localizava-se a 30 quilómetros da cidade da Beira, em frente da Fábrica da Lusalite no Dondo e o acesso à mesma processava-se obrigatoriamente através da estrada que ligava a Beira à Rodésia (hoje Zimbabué). Um pequeno caminho de terra batida com uns 15 metros de comprimento era o que separava a Estrada da pequena quinta onde vivíamos.

Desde há algum tempo que vinha observando alguns charcos de águas das chuvas que se estendiam desde o início da valeta direita da Estrada Nacional e a linha de Caminho-de-ferro que se alinhava paralelo à estrada e que dela não distava mais do que 15 a 20 metros. Em virtude dos solos já se encontrarem totalmente saturados de água, levava a que esses charcos não secassem e se apresentassem cobertos por um manto de plantas aquáticas onde despontavam nenúfares com flores deslumbrantes.

Debaixo das plantas de folha fina circular podiam-se observar pequenos cardumes de peixes multicolores que não apresentariam um comprimento superior a 3 centímetros. Já havia tentado colocá-los no meu aquário mas, por infelicidade minha, não haviam sobrevivido mais do que 48 horas.

Um dia, estava eu na berma da estrada a observar um dos charcos, quando vejo um peixe com um comprimento superior e diferente dos demais: o seu comprimento rondaria os 10 centímetros e a sua cor era um cinza claro. Durante algum tempo não me mexi para não o assustar mas a passagem de um comboio a carvão dos CFM (Caminhos de Ferro de Moçambique) veio estragar a minha observação porque o peixe desde logo se escapou ao meu olhar. Pudera com o barulho que a máquina a vapor fazia!

Dei por mim a pensar que, se aquele charco tinha aquele peixe, possivelmente haveria mais.

Vou a casa, arranjo uma cana de bambu, ato numa das pontas da cana um fio de nylon, aí com um metro e meio de comprimento, e coloco, toscamente, um anzol no outro extremo do fio. Debaixo de uma laranjeira do pomar apanho algumas minhocas e dirijo-me à estrada. Estava a chegar ao meu portão, quando o meu pai me perguntou:

- Onde é que vais à pesca?

- Vou ali à valeta! (Respondi eu.)

- Com uma linha tão grossa e um anzol tão grande, não acredito que apanhes alguma coisa. Quando eu pescava em Portugal, no Rio Tejo, a linha era muito mais fina e o anzol muito pequeno, para que os peixes não os vissem. Caso contrário os peixes não tocavam no anzol. (Disse-me o meu pai.)

- Olha pai. Este é o fio mais fino que encontrei e este é o anzol mais pequeno que tenho. (Respondi eu, continuando o meu caminho para a valeta.)

- Boa sorte! (Disse-me o meu pai à laia de despedida, com um sorriso nos lábios).

Atravesso a estrada, chego-me junto da valeta, afasto com a ponta da cana as folhas de um nenúfar grande e … minhoca no anzol e… anzol na água.

O nosso criado António (que nós carinhosamente tratávamos por “António Maluco”) com um colmo de uma cana tinha-me arranjado uma espécie de bóia e ela era o alvo de todos os meus olhares.

Atrás de mim, a cerca de 3 a 4 metros, os carros e as pessoas passavam para cima e para baixo. Os meus sentidos estavam de tal modo concentrados naquela bóia que nem sequer percebia quem passava e o que diziam.

Ao fim de longos minutos sem ter sentido uma leve “picada” comecei a pensar nas palavras do meu pai. Ele, que havia sido distinguido havia alguns anos num jornal de Abrantes por ter apanhado um barbo muito grande no Rio Tejo junto a Abrantes, era seguramente um entendedor da matéria. A linha e o anzol deveriam ser grandes demais.

A dada altura, estava eu prestes a desistir quando vejo uma bolha de ar, vinda do interior do charco, rebentar junto à minha bóia. Alguns segundos depois… outra.

A bóia mexe-se e eu levanto a cana e sinto algo preso. Volto a puxar a cana e sinto que estou a arrastar alguma coisa. Já com os pés no alcatrão continuo a puxar e sinto-me rodeado por três ou quatros pretos que tal como eu só têm olhos para a ponta da linha.

Da água sai uma figura sinistra.

- É Dôe, menino! É Dôe!
– Diz alguém.

Uma espécie de peixe longilíneo, escuro, com cerca de 40 a 50 centímetros dava saltos na berma da estrada.

- Mata menino! Mata! – Diz outro.

- Matar para quê? Não está na água, não respira, vai morrer! – Respondi eu com o coração a bater de medo olhando para a “figura” que se contorcia.

É então que alguém pega num pau e começa a bater na cabeça do “peixe”.

À medida que o “peixe” ia "levando com o pau" eu ia percebendo que ele não iria ser meu manjar. Se o gosto por peixe já era pouco (e ainda o é), não me estava a ver a comer “aquilo”.

Pergunto então àquele que “liquidara” a criatura:

- Você gosta de dôe?

- Sim menino, gosta. A gente abre ele ao meio, seca ao sol com um pouco de “munho” (sal) e depois come com massa. – Respondeu-me o preto que eu não conhecia.

- Leva. É teu! – Disse eu todo orgulhoso do meu feito.

O preto espeta no peixe um pau afiado que lhe atravessa a cabeça, coloca-o ao ombro e aí vai ele em direcção ao Dondo.

Volto para casa e conto o meu feito. Como qualquer conto que trate uma pescaria julgo que ainda hoje, quer os meus pais quer os meus irmãos não acreditam na “criatura” que pesquei.

Post Script Um: Acrescentaria para concluir este episódio que faz parte da história da minha vida:

- A criatura que apanhei dá pelo nome científico de Lepidosiren Protopterus (fam. Protopteridae, África). Faço-vos um desafio: introduzam este nome no Google e façam uma pesquisa sobre o “tal peixe”.

- Moçambique foi (é e será sempre) uma terra muito especial para mim.

- Alguém será capaz de imaginar que numa valeta de uma estrada, que as águas das chuvas encheram, se possam desenvolver peixes em algumas semanas? Imaginem! É verdade!

- Como eu percebo o meu companheiro de escola que dá pelo nome de Mia Couto, que empunhando numa mão a pena de um poeta e na outra a mestria de um biólogo, tem vindo a divulgar ao mundo as riquezas de um fabuloso País!

- Bem Hajas MIA!