sábado, 22 de agosto de 2009

A Festa da Morte

Se há coisas que me surpreendem é o facto de, depois de termos vivido já alguns “anitos” sermos capazes de recordar episódios da nossa vida que aconteceram há algumas dezenas de anos, com uma nitidez que chega a ser surpreendente.

E o surpreendente é que esses episódios são guardados na nossa memória sem a “nossa autorização”. É como se dentro do nosso cérebro habitasse um bibliotecário com poder discricionário para poder guardar ou eliminar a informação que os nossos sentidos vão captando ao longo do caminho da vida, sem que para tal pudessemos intervir.

Na biblioteca da minha memória são muitos os episódios da minha vida que tenho guardado. Se existem muitos que o tempo já se encarregou de “eliminar”, outros há que se tornaram “imunes” à acção do tempo. E essa “imunidade” é de tal modo activa que mesmo passados muitos anos após terem acontecido, quando “olho” para o “álbum da minha memória”, a sua intemporalidade faz como se tal vivência tivesse sido “guardada” no dia de ontem.

É assim que no meio de “tamanha desarrumação” consigo retirar alguns episódios que vivi durante as minhas férias escolares do ano lectivo de 1963/64.

O meu pai era responsável por uma “cantina” localizada no mato, a cerca de 10 quilómetros de Marromeu, uma Vila localizada na margem esquerda do Rio Zambeze e a Norte do Distrito de Manica e Sofala. A família decidiu que seria ali que seriam passadas as férias grandes escolares.

Recordo muito bem a viagem entre Marromeu e a “cantina”: como para a carrinha Bedford (de cor verde-escuro e de caixa aberta) trabalhar foi preciso “enfiar-se” uma longa manivela na frente do motor e rodar-se com alguma energia; como era sinuoso, estreito e esburacado o caminho de terra batida; como eu e os meus irmãos, atrás e de pé na caixa aberta, nos agarrávamos ao topo da cabine da carrinha e baixávamos as cabeças para nos furtarmos às investidas das canas que existiam ao longo da berma e pendiam para o caminho; como jubilávamos quando o caminho era melhor e permitia ao meu pai atingir o limite máximo de velocidade que a carrinha dava que era os 45 quilómetros por hora; como perscrutávamos no horizonte a existência de cobras e outros animais selvagens.

Recordo muito bem a cantina onde o meu pai vendia à população negra da área (não havia qualquer população branca num raio de 10 quilómetros) todo o tipo de produtos desde vinho a farinha. A cantina pertencia a um tio do meu pai e este era um simples empregado daquele.

Recordo como o meu pai se indignava, resmungando entre dentes, sempre que tinha de adicionar água ao vinho para que a receita fosse maior cumprindo ordens do seu tio e patrão. Homem de carácter forte e profundo respeitador do espaço dos outros, independentemente da sua raça ou credo, foi com alguma naturalidade que o meu pai começou a fazer alguns amigos entre os seus fregueses de raça negra. De entre eles destacava-se o régulo da tribo localizada na área.

E quando os pais são amigos existe toda a probabilidade dos filhos também o serem.

Entre nós e os filhos do régulo (de quem já não lembro os seus nomes) cresceu uma cumplicidade de tal ordem que onde estavam eles, estávamos nós e vice-versa. Os seus “carrinhos” feitos de colmos de canas eram claramente superiores aos nossos de lata. Eles brincavam com os nossos e nós com os deles. Como gostava de “conduzir” os seus carrinhos! Eram autênticas obras-primas. Retirada a casca da cana, com o colmo fazia-se as carroçarias dos camiões, jeeps, carros, etc. A ligação entre os pedaços de colmo era feita à custa de pequenos palitos de cana. As caricas das garrafas dos refrigerantes eram os faróis. As rodas eram feitas com arames e tinham um “sistema de molas” que me deliciava sempre que o carrinho circulava num carreiro com depressões. O melhor de tudo era o facto de, para brincarmos, não termos de nos sentar ou ajoelhar no chão. Fazíamo-lo de pé. Uma longa cana que ligava o volante (em arame) ao carrinho permitia-nos “conduzi-lo” sempre em pé.

Um dia recebemos um convite muito especial. O régulo convidou-nos para uma festa que iria ter lugar à noite.

Através de estreitos caminhos, e com o recurso a lanternas, chegámos ao interior do agrupamento de palhotas onde o régulo, família e demais elementos da tribo viviam. Encaminhados para uma clareira iluminada por grandes fogueiras tive a oportunidade de assistir a um evento que nunca mais esqueci: Uma festa em memória de alguém que acabara de falecer.

Recordo como alguns homens envergando peles de macaco e imitando o andar, gestos e urros dos símios provocavam um corpo que jazia no centro da clareira (seria o morto ou seria alguém no seu lugar?), tudo isto acompanhado ao som dos batuques e sons guturais de homens e mulheres que se espalhavam em torno da clareira.

Na minha inocência aquilo nada me dizia, embora infundisse um enorme respeito acompanhado por um tremor que nos percorria o corpo. Durante algum tempo duraram as "macacadas" até que deu entrada, no recinto, alguém com uma grande pele de leão que o cobria totalmente. Os homens-macaco com urros muito fortes, quais gritos de desespero, de imediato deixaram de provocar o corpo que jazia imóvel no chão, para abandonarem a clareira de uma forma desordenada. O homem-leão chegou junto do corpo, cobriu-o com a sua enorme pele e um enorme silêncio se fez. Alguns minutos depois, o homem-leão começou a deslocar-se para fora da clareira. À medida que se deslocava, o corpo oculto debaixo da sua enorme pele acompanhava o seu movimento. O morto seria um figurante ou debaixo da capa estava alguém que ia arrastando o morto para fora da clareira? Nunca soube.

Quando o homem-leão saiu da clareira “levando” consigo o “morto”, deu-se início a uma enorme festa, onde não faltavam os batuques, a dança e a “nipa” (aguardente de cana sacarina).

Noite dentro, regressámos a casa. Na minha cama e durante o resto daquela noite e na noite seguinte os ecos dos batuques que a selva africana distribuiu não permitiram que eu fechasse os olhos. Como é que alguém era capaz de festejar perante a morte? O que significavam a presença dos macacos e do leão?

Hoje passados que são 45 anos ainda não consegui encontrar as respostas àquelas perguntas. Todavia não deixa de ser curioso o facto de alguém ser capaz de não festejar um nascimento e de festejar uma morte, contrariamente ao que estamos habituados.


Pensando bem:
- Será que o nascimento não é o princípio da dor e a morte o seu fim?
- Será que não é a intensidade da dor, física ou mental, que determina o grau de felicidade do ser humano?
- Será que os macacos significavam as tentações da vida que todos nós permanentemente estamos sujeitos e o leão a impossibilidade de podermos escapar à força de um elemento superior, muitas vezes identificado como destino?
- Será que…?


Tantas são as perguntas que podem ser formuladas sobre a vida e a morte, para as quais não existem respostas matemáticas!

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