sábado, 8 de agosto de 2009

Uma pescaria em África (2)

A época das chuvas do ano de 1969 já decorria havia algumas semanas.

A minha casa localizava-se a 30 quilómetros da cidade da Beira, em frente da Fábrica da Lusalite no Dondo e o acesso à mesma processava-se obrigatoriamente através da estrada que ligava a Beira à Rodésia (hoje Zimbabué). Um pequeno caminho de terra batida com uns 15 metros de comprimento era o que separava a Estrada da pequena quinta onde vivíamos.

Desde há algum tempo que vinha observando alguns charcos de águas das chuvas que se estendiam desde o início da valeta direita da Estrada Nacional e a linha de Caminho-de-ferro que se alinhava paralelo à estrada e que dela não distava mais do que 15 a 20 metros. Em virtude dos solos já se encontrarem totalmente saturados de água, levava a que esses charcos não secassem e se apresentassem cobertos por um manto de plantas aquáticas onde despontavam nenúfares com flores deslumbrantes.

Debaixo das plantas de folha fina circular podiam-se observar pequenos cardumes de peixes multicolores que não apresentariam um comprimento superior a 3 centímetros. Já havia tentado colocá-los no meu aquário mas, por infelicidade minha, não haviam sobrevivido mais do que 48 horas.

Um dia, estava eu na berma da estrada a observar um dos charcos, quando vejo um peixe com um comprimento superior e diferente dos demais: o seu comprimento rondaria os 10 centímetros e a sua cor era um cinza claro. Durante algum tempo não me mexi para não o assustar mas a passagem de um comboio a carvão dos CFM (Caminhos de Ferro de Moçambique) veio estragar a minha observação porque o peixe desde logo se escapou ao meu olhar. Pudera com o barulho que a máquina a vapor fazia!

Dei por mim a pensar que, se aquele charco tinha aquele peixe, possivelmente haveria mais.

Vou a casa, arranjo uma cana de bambu, ato numa das pontas da cana um fio de nylon, aí com um metro e meio de comprimento, e coloco, toscamente, um anzol no outro extremo do fio. Debaixo de uma laranjeira do pomar apanho algumas minhocas e dirijo-me à estrada. Estava a chegar ao meu portão, quando o meu pai me perguntou:

- Onde é que vais à pesca?

- Vou ali à valeta! (Respondi eu.)

- Com uma linha tão grossa e um anzol tão grande, não acredito que apanhes alguma coisa. Quando eu pescava em Portugal, no Rio Tejo, a linha era muito mais fina e o anzol muito pequeno, para que os peixes não os vissem. Caso contrário os peixes não tocavam no anzol. (Disse-me o meu pai.)

- Olha pai. Este é o fio mais fino que encontrei e este é o anzol mais pequeno que tenho. (Respondi eu, continuando o meu caminho para a valeta.)

- Boa sorte! (Disse-me o meu pai à laia de despedida, com um sorriso nos lábios).

Atravesso a estrada, chego-me junto da valeta, afasto com a ponta da cana as folhas de um nenúfar grande e … minhoca no anzol e… anzol na água.

O nosso criado António (que nós carinhosamente tratávamos por “António Maluco”) com um colmo de uma cana tinha-me arranjado uma espécie de bóia e ela era o alvo de todos os meus olhares.

Atrás de mim, a cerca de 3 a 4 metros, os carros e as pessoas passavam para cima e para baixo. Os meus sentidos estavam de tal modo concentrados naquela bóia que nem sequer percebia quem passava e o que diziam.

Ao fim de longos minutos sem ter sentido uma leve “picada” comecei a pensar nas palavras do meu pai. Ele, que havia sido distinguido havia alguns anos num jornal de Abrantes por ter apanhado um barbo muito grande no Rio Tejo junto a Abrantes, era seguramente um entendedor da matéria. A linha e o anzol deveriam ser grandes demais.

A dada altura, estava eu prestes a desistir quando vejo uma bolha de ar, vinda do interior do charco, rebentar junto à minha bóia. Alguns segundos depois… outra.

A bóia mexe-se e eu levanto a cana e sinto algo preso. Volto a puxar a cana e sinto que estou a arrastar alguma coisa. Já com os pés no alcatrão continuo a puxar e sinto-me rodeado por três ou quatros pretos que tal como eu só têm olhos para a ponta da linha.

Da água sai uma figura sinistra.

- É Dôe, menino! É Dôe!
– Diz alguém.

Uma espécie de peixe longilíneo, escuro, com cerca de 40 a 50 centímetros dava saltos na berma da estrada.

- Mata menino! Mata! – Diz outro.

- Matar para quê? Não está na água, não respira, vai morrer! – Respondi eu com o coração a bater de medo olhando para a “figura” que se contorcia.

É então que alguém pega num pau e começa a bater na cabeça do “peixe”.

À medida que o “peixe” ia "levando com o pau" eu ia percebendo que ele não iria ser meu manjar. Se o gosto por peixe já era pouco (e ainda o é), não me estava a ver a comer “aquilo”.

Pergunto então àquele que “liquidara” a criatura:

- Você gosta de dôe?

- Sim menino, gosta. A gente abre ele ao meio, seca ao sol com um pouco de “munho” (sal) e depois come com massa. – Respondeu-me o preto que eu não conhecia.

- Leva. É teu! – Disse eu todo orgulhoso do meu feito.

O preto espeta no peixe um pau afiado que lhe atravessa a cabeça, coloca-o ao ombro e aí vai ele em direcção ao Dondo.

Volto para casa e conto o meu feito. Como qualquer conto que trate uma pescaria julgo que ainda hoje, quer os meus pais quer os meus irmãos não acreditam na “criatura” que pesquei.

Post Script Um: Acrescentaria para concluir este episódio que faz parte da história da minha vida:

- A criatura que apanhei dá pelo nome científico de Lepidosiren Protopterus (fam. Protopteridae, África). Faço-vos um desafio: introduzam este nome no Google e façam uma pesquisa sobre o “tal peixe”.

- Moçambique foi (é e será sempre) uma terra muito especial para mim.

- Alguém será capaz de imaginar que numa valeta de uma estrada, que as águas das chuvas encheram, se possam desenvolver peixes em algumas semanas? Imaginem! É verdade!

- Como eu percebo o meu companheiro de escola que dá pelo nome de Mia Couto, que empunhando numa mão a pena de um poeta e na outra a mestria de um biólogo, tem vindo a divulgar ao mundo as riquezas de um fabuloso País!

- Bem Hajas MIA!

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