quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O Jogo das "Escondidas" (1)

Quem não se lembra das actividades desportivas e lúdicas que os nossos professores nos proporcionavam nos intervalos dos tempos lectivos quando frequentávamos a Escola Primária?

Viajando no tempo até aos longínquos anos de 1961 a 1965 relembro as “peladinhas de futebol”, o jogo da “Cabra cega” e o jogo das “Escondidas”. Debaixo de uma inocência do tamanho do mundo, não percebia certas coisas.

Não percebia
porque é que a dado passo da peladinha de futebol, o dono da bola entendia terminar o jogo, depois de ter esgotado a sua capacidade inventiva na criação das leis do jogo e não ser capaz de vencer, enquanto o professor diante daquele comportamento reprovável nada fazia para o corrigir.
Não percebia porque é que alguns precisavam do apoio constante do professor para poderem “brilhar” nos jogos ou nas brincadeiras. Alguns deles chegavam mesmo a esconder-se nas “costas” do professor e era ver a forma ardilosa que este usava garantindo-nos que eles se tinham escondido nos mais diversos locais, excepto nas suas “costas”.

Não percebia porque é que o professor só protegia alguns nem que para isso nos tivesse de mentir. Eu e outros sempre que buscávamos o seu apoio, a resposta era sempre a mesma: “desenrasca-te rapaz!”. Nem no dia em que marquei um golo fabuloso (sem saber como) mereci a atenção do professor que, por muito menos, costumava dar a outros.

Até que percebi que os protegidos do professor eram tratados pelo diminutivo do seu nome próprio. Era o Betinho, era a Luisinha, era o …inho, era a …inha. O dono da bola era o Toninho e aqueles que usavam o professor como escudo no “Jogo das Escondidas” era a Bélinha e o Pedrinho. Percebi, então, que se queria ter, também, a atenção e protecção do professor, não poderia ser tratado por Fernando, mas sim por Fernandinho. É que os protegidos tinham a sua atenção não só no recreio, mas também na sala de aulas. Para eles não havia a régua dos cinco olhos, não havia a vara de bambu, não havia puxões de orelhas, não havia o castigo físico. Quando muito, o castigo máximo não passava de se postarem de pé a olhar fixamente para uma parede localizada a meio metro deles. Eu não era diferente. Também eu queria ter a protecção e atenção do professor.

Usando toda a minha criatividade, tudo fiz para que tal sucedesse. Eu bem dizia para me tratarem por Fernandinho, mas ninguém me dava ouvidos. Cansado de tanto lutar questionei-me porque é que eu não tinha sucesso. Percebi então que os …inhos e as …inhas eram filhos do Senhor Doutor, do Senhor Professor, do Senhor Engenheiro, do Senhor … e o meu pai era um simples fotógrafo. Era preferível manter as coisas tal qual estavam. Os que eram tratados por alcunhas depreciativas estavam numa situação pior que a minha. Por outro lado ainda havia aqueles sobre os quais recaía a “ira” do professor. Acumulando as funções de juiz e carrasco, alguns professores primários do Estado Novo, eram o terror, em figura de gente, de alguma “cachopada”. Os que mais “sofriam” eram geralmente aqueles cujos pais, analfabetos ou com fracos estudos, esperavam que os filhos atingem-se um nível escolar que as contingências da vida lhes negaram. “Apanhavam” porque não sabiam, “apanhavam porque se riam”, “apanhavam por tudo e por nada”. Plagiando alguém, “dia que não apanhassem, não era dia”. Só que pior que a dor que sentiam era ouvirem os pedidos que os seus pais faziam ao seu professor: “Chegue-lhe, Senhor Professor, não tenha medo. Nós até agradecemos!”. Para os pais a palavra do professor era sagrada. Eram poucos os pais que acreditavam na palavra dos seus filhos após ouvirem destes a sua versão sobre o que estivera na origem da punição do professor. Se a versão dada pelo professor não era coincidente com a do seu filho, o mentiroso nunca era o professor. Casos haviam que a segunda parte da tareia tinha lugar em casa.

Quantos de nós não temos histórias para contar sobre o que era a vida de um estudante do ensino primário antes da Revolução dos Cravos? Uma das muitas que ouvi e que jamais esquecerei prendia-se com uma situação de um casal de professores leccionando na mesma escola. Como ela não gostava de punir fisicamente os alunos que, segundo ela, mereciam ser castigados, mandava-os para a porta da sala do marido. A espera que esses alunos faziam à porta da sala do professor era angustiante. Sabiam que logo que a porta se abrisse e o professor os visse, não havia lugar a diálogo. O professor não precisava de saber a razão porque ali estavam. Quando o professor assomava à porta e via os alunos da sua esposa postados junto a ela dava-se início à distribuição da “fruta” com o recurso a mão aberta e ginástica de pés. Coincidência (ou talvez não), nenhum dos que eram alvo da fúria (?) do professor era tratado por …inho ou …inha. Façam um exercício: vistam a pele desse professor e vejam-se a abrir uma porta. Deparam com um grupo de 3 ou 4 crianças do lado de fora da porta e entram em acção começando a distribuir uns “caldinhos” e uns pontapés nos fundilhos de algumas calcitas pequeninas e inocentes. Dá para arrepiar.

Mesmo sendo um tempo diferente dos de hoje em dia, nem todos os professores primários respiravam violência. Muitos deles com um sentido pedagógico apurado jamais recorreram a um acto físico para punirem um erro dos seus alunos.

Viajando no tempo e regressando aos nossos dias, tudo isto vale por dizer que a nossa sociedade, 34 anos depois do 25 de Abril de 1974, ainda apresenta grandes arestas à espera de serem limadas. A discriminação de alguns indivíduos ou grupos que compõem a nossa sociedade deixou de ser pública para passar a ser refinada e silenciosa. Questiono-me ainda hoje se essa discriminação não chega a ser mais dolorosa que no passado.

Os legados que a vida já me deu obrigam-me a traçar um objectivo: Enquanto membro de uma sociedade que se quer justa, tenho o dever de participar na erradicação de tudo aquilo que limita a igualdade entre os seus membros. O cargo político pelo qual estou investido permite-me, de alguma forma, ser activo no objectivo que tracei.


(No próximo artigo abordarei a estratégia do Presidente da Câmara do Sardoal que sendo obrigado a publicar um anúncio sobre concursos para admissão de pessoal, se tem comportado como aquele professor primário do Estado Novo quando interferia directamente no “Jogo das Escondidas” dos seus alunos. Para que o lugar seja para um …inho, por ventura seu protegido, é capaz de pagar o dobro do que pagaria caso publicasse tais anúncios no jornal que normalmente usa para outros fins que não aqueles e fazer letra morta da Constituição quando esta refere que: “… a Administração Pública, enquanto entidade empregadora promove activamente uma política de igualdade de oportunidade entre homens e mulheres no acesso ao emprego e na progressão profissional, providenciando escrupulosamente no sentido de evitar toda e qualquer forma de discriminação.”Na última publicação em Maio deste ano, esse dobro equivaleu a, aproximadamente, 100 Euros. Com 100 Euros o que não se poderia fazer? Por exemplo, reparar ou substituir a válvula-bóia do Reservatório de Valhascos que continua avariada. Ainda no passado Domingo, dia 9 de Agosto, tive a oportunidade de observar os desperdícios de água tratada a fluírem ao longo da estrada, mesmo depois de ter alertado para o problema e contrariando a tese do Presidente da Câmara que durante anos vinha referindo que o desperdício de água tinha origem na lavagem de filtros, que hoje se sabe que, a existirem, são invisíveis.)