sexta-feira, 24 de julho de 2009

Mia Couto

Na semana passada ao perceber que o escritor Mia Couto iria à Biblioteca Municipal de Abrantes, no dia 21 de Julho, apresentar a sua última obra “Jesusalém”, entendi efectuar uma anotação na minha agenda para não faltar. O motivo era óbvio, para além do escritor retratar nas suas obras a vida das gentes e da terra Moçambicana (que me são muito caros), havíamos estudado juntos no mesmo Liceu.

Quando o escritor entrou no átrio da Biblioteca António Botto, pelas 21:30 já tinha à sua espera umas largas dezenas de pessoas que, de pé ou sentadas nas cadeiras disponíveis e nos degraus do hall, apresentavam alguma curiosidade e expectativa sobre a última obra do autor e o que ele tinha a dizer sobre ela.

Sentada ao meu lado a Gina perguntava-me que obra já havia lido de Mia Couto. Nenhuma, respondi eu. Foram várias as vezes que desfolhei alguns dos seus livros e li alguns parágrafos isolados, contudo ler uma obra completa, nunca o fizera. Porquê? Não sei. Falta de tempo. Falta de oportunidade. Nostalgia. Certo, certo é que realmente nunca lera qualquer obra completa daquele autor.

Iniciado o encontro, coube ao Director da Biblioteca abrir a sessão. Munindo-se de duas folhas A4, procedeu à leitura das notas que havia redigido as quais tratavam do “corpo e da alma” da obra que o escritor apresentava: “Jesusalém”. Para um leigo, como eu, das artes literárias, confesso terem sido várias as apreciações técnicas abordadas que não percebi. Não sendo o momento o mais indicado para interpelar o seu autor sobre o significado de algumas palavras por si utilizadas, não tive outra alternativa que não fosse remeter-me ao natural silêncio que esse momento impunha, não me esquecendo porém de bater as palmas no final da sua intervenção, acompanhando os outros (ou será que eram os outros que me acompanhavam?).

Chegada a vez do escritor, este, de uma forma simples e clara, fez uma abordagem da obra e do que esteve na génese da mesma. A mim, pelo menos, não me deixou “pendurado” nas dissertações literárias que entendeu proferir.

À medida que o diálogo se foi estabelecendo entre o escritor e a assistência, comecei a admirar a “verdade” daquele que um dia havia sido meu colega. Essa admiração ganhou relevo quando alguns dos assistentes fizeram conjecturas sobre a possibilidade do escritor ter utilizado na sua obra referências histórico-filosóficas, cantando-lhe loas por isso, enquanto que da parte do escritor a sua resposta a tais hipóteses era de que nunca havia pensado em tal e que a história e a escrita apareceram de uma forma espontânea. Mesmo quando o escritor foi elogiado pela sua audácia em criar novas palavras, com uma humildade do tamanho do mundo, rejeitou tal elogio afirmando que tais palavras derivavam da transposição das palavras dos dialectos locais moçambicanos para o português. Como eu o percebia! Se dúvidas houvessem sobre as tais palavras que o escritor rejeitava como sendo da sua autoria, recordei-me de uma anedota que contávamos em Moçambique:

- Um dia um “mezungo” (homem branco) andava à caça e perdeu-se no mato com o seu jipe. Viu um rapaz preto ao longe e gritou-lhe:
- “Ei Mwana, bueracuno (ó rapaz anda cá)!”
- “Diga Patrão!”
- “ O acampamento de caça é longe?”- perguntou o caçador.
- “ Chi, Patrão. A botear é longe, mas de carro é perto! - respondeu o rapaz preto de pronto.


Onde é que a palavra "botear" entra no acordo ortográfico?

Se intimamente já apresentava alguma vontade de o interpelar, ao perceber o humanismo e a grandeza daquele homem, que a terra moçambicana havia gerado e polido, não me coibi e pedi para intervir.

Sendo aceite o meu pedido, olhei para o escritor e disse:

- “ Gostava de lhe fazer um desafio e uma pergunta.”

- “O desafio é simples: Faça uma viagem no tempo e para muito longe daqui. Recue 40 anos e veja-se a entrar num portão de uma escola. Contorne o edifício da escola pela esquerda (a frente estava reservada aos professores e a direita às raparigas), passe atrás do ginásio dos rapazes, suba uns degraus, passe em frente da entrada para o ginásio vire à direita, suba mais dois lanços de escadas, não entre na 1ª sala, mas pode entrar na 2ª ou na 3ª sala, sente-se virado para o quadro e veja entrar o Fifas (lembram-se do tal professor de português que eu tive e que já aqui escrevi?)”.

- “A pergunta é esta: Nesta altura o clic de escritor já despontava?”


Bem à medida que eu ia falando, um brilhozinho nos seus olhos revelava uma alegria por reencontrar muito longe da sua terra (Moçambique) um antigo colega de liceu. O diálogo que a seguir estabelecemos foi como se estivéssemos apenas os dois naquele espaço. Sendo mais velho que ele alguns meses, não nos lembrámos se de facto chegámos a ser colegas de sala. Talvez sim. Talvez não. Que durante muitos anos partilhámos o mesmo espaço escolar. Inequivocamente.

No fim um forte abraço e uma dedicatória sua no seu primeiro romance TERRA SONÂMBULA que não resisto em partilhar (“Ao Fernando regressando ao Liceu onde fomos meninos. Mia Couto”) foi o que restou antes de cada um continuar a seguir o seu próprio caminho.

Este reencontro veio agitar o álbum de recordações do meu passado. De um passado rico e frutuoso que um dia pegou numa criança com 8 anos e a levou até aos 21 anos, moldando-a em muitos aspectos para o resto da sua vida.

Em homenagem ao Mia, durante algum tempo vou contar algumas histórias que vivi há 40 anos e que irão provar seguramente porque é que a terra africana é mística. O misticismo não radica apenas no exotismo das suas gentes, mas também na própria terra.

No próximo artigo: Uma pescaria.

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Post Script um: Não concluo o meu artigo de hoje sem que antes aborde um assunto triste e partilhe uma curiosidade da natureza que tive a oportunidade de observar.

No passado sábado o Ilídio “do Pouchão”, como vulgarmente era tratado, “deixou-nos”. Nos últimos meses tive a oportunidade de o conhecer melhor, quando depois de um dia de trabalho bebíamos uma cervejinha na companhia de uns outros amigos e conversávamos sobre tudo e até sobre nada. Admirava a sua força interior e o seu espírito empresarial, característico do homem português, que já escasseia, e que vulgarmente designamos de “antes quebrar que torcer”.

Nesse dia fatídico, estávamos juntos com outros amigos na Lapa participando numa sardinhada na qual ele era um dos seus organizadores. Sabendo que eu não era (e não sou) fã de sardinhas foi o primeiro a prometer-me umas costeletas de javali e cumpriu.

Logo após o almoço uma sucessão de informações que davam conta que alguns seus trabalhadores se encontravam em perigo de vida, não hesitou em atirar às urtigas o pic-nic e ir em busca do salvamento dos seus homens.

A notícia que todos nós não queríamos ouvir veio algumas horas depois: - O Ilídio faleceu.

Durante longos minutos (fala-se em 40 minutos) pediu ajuda no fundo de um poço, do mesmo poço onde se encontravam os seus homens que felizmente se salvaram. Ninguém lhe respondeu.

- Ilídio. Onde quer que estejas, descansa em paz!

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Curiosidades da natureza: O que será isto?

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