domingo, 15 de junho de 2008

Uma Lição de Vida

Corria o ano de 1973, tinha 18 anos e vivia em Moçambique. Desde os 13 anos que a espingarda de pressão de ar, a espingarda de calibre 22 e pontualmente algumas armas de guerra (Espingardas Mauser e G3 e Pistola Walter) estavam para mim, como uma qualquer “playstation” está para os adolescentes dos nossos dias.

A espingarda de pressão de ar era o primeiro objecto que, quer eu quer os meus pais ou irmãos, trazíamos para o quintal e encostávamos à porta da cozinha logo que o dia amanhecia. As duas amoreiras, que faziam sombra às traseiras da casa que habitávamos, funcionavam como entreposto obrigatório da passarada da região. Estorninhos, toutinegras (“tutas”), pardais do arroz, “Zé brutos” (nunca soube o nome daqueles pássaros estranhos, de bico largo, que por mais barulho que a pressão de ar fizesse, nunca se assustavam, a não ser que o “chumbo lhes tocasse”) e tantos outros. Invariavelmente, o almoço ao domingo era passarinhos fritos e batata frita para pai, mãe e três filhos.

A espingarda de calibre 22 (uma “Brno”) servia para os concursos de tiro ao alvo em que participava com alguma regularidade, quer a título individual quer em representação do clube que me apoiava, que era a firma para a qual meu pai trabalhava, a Lusalite de Moçambique, mais especificamente, a Lusalite do Dondo. Só muitos anos mais tarde é que percebi a razão porque a um miúdo, com algum jeito para dar uns “tiritos”, era colocada uma espingarda de calibre 22 nas suas mãos e, pontualmente, era incentivado a usar armas de guerra, alguns anos antes de ser obrigado a usá-las no teatro da guerra. Tudo isto tinha um propósito claro. Assentava numa estratégia de autodefesa da comunidade branca em caso de necessidade. Um dos rostos que se encontrava por detrás dela, estava um estadista que aprendi a respeitar e a admirar (Engº Jorge Pereira Jardim, responsável máximo pela Lusalite em Moçambique e uma figura incontornável, e quiçá incompreendida, do regime de Salazar e Caetano).

Podereis perceber então que aquele jovem ainda que gostasse de jogar futebol, voleibol e patinar (ainda que mal), tinha de estar sempre perto de uma espingarda. Ou a matar passarinhos no quintal da casa ou na floresta, que se localizava na orla do bairro e nas traseiras do clube, ou em busca de uma bala que tocasse o 10 de um alvo localizado a 25, 50 ou 100 metros de distância.

Um dia recebi uma notícia que me encheu de alegria: tinha sido convocado para disputar os campeonatos de tiro de calibre 22 (espingarda e pistola) na Rodésia (hoje, Zimbabwe). De carro, juntamente com outros atiradores, num dia de manhã, lá saímos do Dondo e rumámos à Rodésia.

Era já noite quando chegámos a Salisbury (hoje, Harare) e decidimos pernoitar no Courtney Hotel, depois de uma longa paragem em Umtali. Manhã cedo, rumámos a Selous (60 quilómetros para Sul em direcção a Bulawayo). Iríamos ficar distribuídos pelas casas de uns fazendeiros Rodesianos, dado não haver unidades hoteleiras num raio de 30 quilómetros em torno da carreira de tiro onde as provas se iriam realizar. Ainda hoje retenho no baú das minhas memórias o aspecto dos campos que circundavam a estrada que ligava Salisbury a Selous: campos cultivados a perderem de vista. (Quando hoje as notícias nos dão conta da a miséria que invade o povo do Zimbabwe, que torna este lindo País num dos mais pobres do Mundo, a minha revolta é imensa ao constatar que tal se deve unicamente à demência de Robert Mugabe e à passividade da comunidade internacional).

Chegados a Selous, dividimo-nos em grupos e eu fui incumbido de ser o porta-voz de um pequeno grupo de 4 ou 5 atiradores, por de entre eles ser aquele que melhor dominava a língua de Shakespeare. Fui apresentado a um atirador Rodesiano que nos serviu de guia até à casa de um fazendeiro abastado, de seu nome Basil Smith. Após algum tempo de caminho, durante o qual tive a oportunidade de saber que tudo o que se avistava (campos cultivados com milho e tabaco) e não se avistava era propriedade do Senhor Smith, chegámos a um conjunto habitacional constituído por uma algumas casas do estilo colonial inglês, rodeado de árvores de grande porte e jardins onde a relva, meticulosamente aparada, chamava a atenção pela grande superfície que ocupava. Um homem, na casa dos 40 anos, esperava por nós. Num inglês já pouco “British”, que a linguagem nativa havia influenciado as gerações que o antecediam, apresentou-se como sendo Basil Smith e deu-nos as boas-vindas. Após alguns minutos de cumprimentos e conversas de ocasião, os meus olhos são atraídos por uma imensidão de pássaros que “infestavam” aquelas árvores seculares. O meu instinto de caçador de pássaros falou mais alto e ousei perguntar ao Senhor Basil quantos pássaros ele costumava matar por semana. Ele olhou para mim e respondeu-me: - Nem eu, nem os meus filhos matamos pássaros. Gostamos de os ver e ouvir. No entanto, se gostas tanto de matar pássaros dou-te toda a autorização para matares os que quiseres – disse-me o Senhor Smith com uma voz calma, mas triste.
Numa fracção de segundo, busquei um buraco para me esconder, mas não encontrei. A vergonha invadiu-me. Diante de mim tinha um homem, que exportava milho e tabaco para alguns Países estrangeiros, que gostava de pássaros mas que, dominado pelo sentido da hospitalidade, era capaz de abdicar de algumas “riquezas” só para que os seus convidados se sentissem bem. Perante tudo isto apenas pude balbuciar: - Obrigado, mas não quero matar pássaro algum.

De regresso a Moçambique, o meu instinto de caçador de pássaros já não foi o mesmo. O sentimento de matar os “chingúias” que se encostavam entre si, empoleirados nos fios dos telefones, apenas para os dar ao gato, já não era o mesmo. O sentimento de matar um pássaro, só para poder observar melhor as suas penas ou a dimensão do seu bico, também já não era o mesmo. Tal mistura de sentimentos levou a que, pouco tempo depois, os alvos das miras das minhas espingardas passassem a ser apenas alvos sem vida.

Hoje, muitos anos depois, como gosto de ver e ouvir cantar os pássaros! Só tenho pena que não esvoacem e cantem mais perto de mim.

Quanto ao Senhor Basil Smith, não sei se ainda é vivo ou se também ele foi vítima da demência e tirania de Robert Mugabe (quando autorizou que os auto-denominados guerrilheiros da libertação do colonialismo, roubassem e matassem os fazendeiros brancos, instalados no Zimbabwe por gerações). A lição de vida que me deu naquele dia, no ano de 1973, ainda hoje está presente em muitos dos meus comportamentos e atitudes: “palavras simples e pensamentos sinceros” conseguem produzir em mim um efeito de mudança, que a força bruta de “palavras maltratadas e pensamentos camuflados” não conseguem.

Sem comentários: