quarta-feira, 2 de abril de 2008

A (In) Disciplina na Escola

1969 – Tinha 14 anos e frequentava o 4º ano (hoje seria equivalente ao 8º ano de escolaridade) do Liceu Pêro de Anaia, na Beira, em Moçambique. Pertencia a uma turma só de rapazes (naquele tempo não havia misturas de sexos até ao 5º ano, e metade do Liceu era para os rapazes e a outra metade para as raparigas). Era uma turma de 25 a 30 alunos, com idades compreendidas entre os 14 e 19 anos. Não me recordo dos bons alunos, mas recordo-me, perfeitamente de 2 alunos que gostavam de se sentar no fundo da sala e concentrar em si, a atenção dos colegas e de alguns professores. O “Nelo” e o “Zé Brás” eram os líderes da opinião da turma sempre que o assunto versasse temas que nada tivessem a ver com as matérias leccionadas, porque relativamente a estas eram autênticas nulidades.
E a culpa de nada saberem não era pelo facto de não estudarem, mas de acordo com a sua ideia, pelo facto dos professores não saberem ensinar. Será fácil de perceber que estas duas criaturas quando se sentavam nas carteiras não viam a hora da aula terminar. Até parecia que a carteira tinha picos. Naquela época quem somasse um certo número de expulsões da sala de aula, poderia, numa primeira fase, apanhar uma suspensão temporária e, numa segunda fase, até a própria expulsão. Por isso definiam um objectivo: serem expulsos da sala de aula, sem que o facto ficasse registado no livro de ponto. Quais “predadores”, poucas semanas após o início das aulas, estavam identificados os professores capazes de responderem às suas pretensões: o “Fifas” e a “Josefina Cambalhota”.
O “Fifas”, de quem já não lembro o nome, era o professor de Português. Recordo-o como sendo um homem de meia-idade, com um capital de conhecimentos notável, mas que tinha um estranho hábito: Sempre que um aluno criasse alguma perturbação na sala de aulas, sorrateiramente, deslocava-se em direcção a esse aluno e depois de passar por ele, “ZÁS!” assentava-lhe um “cachaço” no pescoço. Um dia, ao pretender punir o “Zé Brás”, este apercebendo-se que iria levar mais um cachaço, entendeu levantar-se. Surpreendido com tal gesto o professor deu meia volta e mandou-o para a rua. Para surpresa de todos nós verificámos que ele não tinha marcado a devida falta disciplinar no Livro de Ponto. O facto repetiu-se com outros actores até que por entre nós floresceu a ideia de que o “Fifas” era cobarde: Se quiséssemos ir para a rua sem falta disciplinar bastaria provocá-lo e esperar que ele se dirigisse a nós. Depois, apenas nos restava levantar e livrarmo-nos da aula “chata” de Português. Na sequência das célebres apostas do “não és homem, não és nada” chegou a minha vez de testar o bom do “Fifas”. Quando chegou a altura de me levantar, as pernas tremiam-me tanto que não sabia se em vez de me levantar não iria cair. Mas lá me levantei e lá consegui ouvir as palavras milagrosas “Vai para a rua!”. As minhas pernas eram chumbo e buscando forças onde não havia lá consegui dirigir-me para a porta da sala. Fechada a porta senti-me um “herói”. Julgo que não valerá a pena referir que, daquele dia em diante, quando entendia que a aula de Português poderia comprometer um jogo de futebol ou o estudo para um teste a outra disciplina, a falta à aula estava garantida.
A “Josefina Cambalhota”, de quem também já não consigo lembrar o seu verdadeiro nome, era a professora de Física. Recordo-a como sendo uma mulher baixa, de aspecto frágil e que tinha o hábito de apenas trilhar o espaço entre a porta da sala e a sua secretária. De vez em quando lá se levantava da cadeira e desenvolvia alguns exercícios no quadro localizado nas costas da sua secretária. Um dia, perante o comportamento menos cívico de um dos tais líderes de opinião (seria o Nelo!), ganhou coragem bastante e determinou a expulsão do meu colega da sala de aulas. Este acatou a ordem de expulsão de imediato e quando passava em frente da sua secretária disse baixinho: “-Se me atribuir uma falta disciplinar no livro de ponto, o seu carro vai sofrer as consequências!”. Fechada a porta da sala, o outro aluno (seria o Zé Brás?) afirmou: “- Stora não estou de acordo com o seu procedimento!”. A resposta da professora à intervenção do aluno, foi imediata: “-Rua!”. Escusado será dizer que a professora recebeu a mesma ameaça quanto aos danos que poderiam recair sobre o seu carro, caso registasse a falta disciplinar. Estavam criadas as condições para que eu e mais alguns outros copiássemos a estratégia da ameaça sempre que entendíamos faltar à aula de Física. Para o efeito as palavras-chave eram “-Stora não estou de acordo com o seu procedimento!”, seguidas do “-Olhe o seu carro!”. Não raras vezes em poucos minutos quase metade da turma era colocada na rua sem que sobre os alunos pendesse algum castigo disciplinar real. A irreverência da minha adolescência não me permitia deixar de os acompanhar.
Imaginam qual foi o resultado prático de tamanha irreverência e de tais “actos heróicos”? Reprovei no fim do ano lectivo de 1969/1970.


[Na próxima A (In) Disciplina Na Escola (Parte 2 de 3) contarei a minha experiência enquanto Professor do 8º ano, na disciplina de Matemática, ao ter de lidar com dois alunos quais cópias perfeitas de um qualquer “Nelo” ou de um “Zé Brás”.]

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